Estas três situações – cortes de eletricidade, transportes inter-ilhas deficiente, e insegurança incontrolada – são suficientes para traçar um primeiro balanço do Estado da Nação. Lembram-nos que o desenvolvimento não se mede apenas em indicadores económicos como o PIB e outros rankings internacionais, que alias, as autoridades apreciam e gostam de ostentar.
Por Alexandre Fontes
Nem sempre é necessário consultar relatórios ou ouvir discursos solenes para entender o estado real de um país. Às vezes, um simples dia ordinário, contado com honestidade, é suficiente para traçar um retrato muito mais eloquente do que números. Aqui estão três situações vividas, que dizem muito sobre as dificuldades atuais em Cabo Verde – em termos de eletricidade, transporte inter-ilhas e segurança interna.
- Quando a luz se apaga, a economia pára.
Ainda ontem, numa simples tentativa de comprar pão, deparamos com uma situaçao de falha. A padaria de Achada Santo-Antão (perto do antigo Di Nos) não tinha nada para vender – não por falta de farinha ou de água, mas por falta de eletricidade. Mesmo problema nas novas lojas, especializadas na venda de água filtrada: por falta de eletricidade, nao havia serviço.
Pensando em ganhar tempo de forma útil, uma tentativa de visita ao barbeiro terminou em mais um fracasso. Este último, exasperado, praguejava contra a Electra ou EDEC (ou uma das suas múltiplas designações recentes): "num dia, mal dois cortes de cabelo, e ainda assim! Para o último cliente, estive prestes a deixá-lo com metade da cabeça rapada", brinca amargamente.
Para além da anedota, esta realidade quotidiana revela uma verdade inquietante: a economia local, seja formal ou informal, depende inteiramente de um serviço de eletricidade deficiente. Uma situação indigna de um país que se orgulhou ha pouco, da sua promoção à categoria de Países de Rendimentos Médios Alto.
- Viajar no seu próprio país, um percurso do combatente
Um familiar que vive nos Estados Unidos voltou recentemente para passar alguns dias de férias no seu país natal. O seu projeto era simples: visitar os pais na Brava, passar quatro dias com eles, voltar a Santiago e, em seguida, explorar uma outra ilha antes de regressar aos EUA. Mas três dias após a sua chegada à Praia, ele ainda estava à espera de um barco para ir à Brava.
Já tinha excluido as ilhas de Maio e de São Nicolau dos seus planos, alertado por outros viajantes sobre a imprevisibilidade do transporte para essas ilhas. Mas perante tantas incertezas, ele acabou por abandonar a ideia de descobrir uma outra ilha. Mais grave ainda, ele teme agora não conseguir voltar a tempo da Brava para apanhar o seu voo para os Estados Unidos.
Inclusivo, teve dificuldade em acreditar, dada a sua jovem idade, que, numa época não muito distante, havia voos diretos e regulares entre Praia e Boston – e ainda menos de Praia para o Brasil realizados pela companhia aérea nacional. E no entanto...
Esta narrativa ilustra uma outra faceta preocupante da vida insular atual em Cabo Verde: a falta de fiabilidade e de regularidade dos transportes inter-ilhas, que limita tanto a mobilidade dos cidadãos como o desenvolvimento do turismo e condiciona o dinamismo económico.
- Insegurança: o silêncio das midias do Estado contra os factos
O conselho que muitos cabo-verdianos não gostariam de dar aos seus amigos ou turistas que visitam o nosso país, mas não entanto se sentam obrigados: "Tenham cuidado quando saírem e evitem as ruas desertas após o cair da noite". Não é um excesso de prudência, é um reflexo de sobrevivência, mas é pesado para qualquer cabo-verdiano que acreditou e ainda acredita neste país.
O paradoxo é que a televisão pública e os meios de comunicação estatais continuam a silenciar os assaltos, as violências e agressões, preferindo preservar a ilusão de uma criminalidade em diminuição – uma posição bem conveniente para não contradizer o discurso e as estatísticas oficiais. Contudo, as redes sociais, essas não mentem. Os factos são partilhados, os testemunhos abundam, as feridas e traumas permanecem.
Um balanço em três imagens
Estas três situações – cortes de eletricidade, transportes inter-ilhas deficiente, e insegurança incontrolada – são suficientes para traçar um primeiro balanço do Estado da Nação. Lembram-nos que o desenvolvimento não se mede apenas em indicadores económicos como o PIB e outros rankings internacionais, que alias, as autoridades apreciam e gostam de ostentar.
O progresso e a consequente melhoria da qualidade de vida devem ser sentidos no dia-a-dia dos cidadãos, na estabilidade da sua vida, na sua capacidade de se deslocar, de trabalhar, de viver em segurança. Nunca deve ser feito à custa das conquistas sociais, nem contentar-se com promessas vazias.
Ainda é tempo de retificar a situaçao economica e social no país. Não através de discursos, mas por ações concretas, à altura dos desafios que os cabo-verdianos enfrentam no quotidiano.
No final, no que diz respeito ao progresso social que deve refletir o estado da Nação, o estado real, poderíamos simplesmente olhar para um outro indicador que, aliás, está ao alcance de todos, a emigração dos cabo-verdianos para o exterior. De fato, esse indicador sempre refletiu as condições de vida num país e a esperança dos jovens num futuro mais próspero.
Texto escrito após uma falta de eletricidade e que me obrigou a redigir com uma caneta e transcrito no computador em formato digital, quando luz dja bem.
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