A energia de um país novo era “mobilizadora” e “determinante”, há 50 anos, na independência de Cabo Verde, para enfrentar secas e falta de tanta coisa básica, conta Manuel Faustino, membro do Governo de transição com um percurso peculiar.
Foi autor e compositor de música de intervenção, com temas ainda hoje célebres (“Serafim” ou “Nho Keitone”, por exemplo), escritos na clandestinidade e expressão da vocação política, até concluir a formação em Medicina, em Coimbra, e voltar às ilhas para o nascimento do país.
“No primeiro dia em que entrei aqui estava assustadíssimo: tinha 26 anos, nunca me passou pela cabeça estar num Governo”, conta em entrevista à Lusa, ao apontar para o antigo edifício do Ministério da Educação, no centro da capital.
“Vim para a Praia dias antes para convencer as pessoas de que não fazia sentido ir para o Governo. Não consegui, tive de entrar mesmo”, conta.
“Às vezes perguntava-me: onde é que me vim meter, tinha a sensação que estava a representar”, num dia, defensor da independência na clandestinidade, em Portugal, e no outro, ministro em funções, a despachar no seu gabinete, no país que preparava a emancipação.
Acabaria por receber a pasta de ministro da Educação e Cultura no executivo partilhado com a autoridade portuguesa nos meses que antecederam a declaração de independência, a 05 de julho de 1975. “A relação era fácil” com os outros membros do executivo de seis elementos.
Do lado português, tinham assento o comodoro Almeida d’Eça (alto-comissário), José Barroco (ministro da Administração Interna) e Vasco Pereira (ministro do Equipamento Social e Ambiente), enquanto o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), além de Faustino, contava com Amaro da Luz (ministro de Coordenação Económica e Trabalho, já falecido) e Carlos Reis (ministro da Justiça e Assuntos Sociais).
“Um dos ministros portugueses alinhava mais connosco do que com o alto-comissário”, recorda, ao reviver o ambiente “tranquilo” em que “não chegou a haver familiaridade, mas havia cordialidade”.
Quando havia algum impasse, “remetia-se o assunto para discussões entre o alto-comissário e Pedro Pires, responsável maior pelo PAIGC em Cabo Verde”, futuro primeiro-ministro – eram eles que desembaraçavam os nós, mas Manuel Faustino nem se lembra de qualquer “bloqueio”, porque foi uma transição sem sobressaltos.
“Além das questões ligadas às pastas, tínhamos atividades político-partidárias, era um período muito intenso de mobilização e organização” no embrião do país libertado.
“Na verdade, a discussão sobre um novo país veio a dar-se depois da independência. Na altura, o mais importante era manter o ‘status quo’, manter as instituições a funcionar, as escolas abertas” e “gerir algum fervor mais intenso, próprio do período” de emancipação popular.
Manuel Faustino guarda vivas as memórias do “problema com estudantes do último ano do secundário, que defendiam que não devia haver exame de Português: diziam que deviam passar todos, justificando-o com o período revolucionário”.
“Pela primeira vez eu estava do outro lado”, como ministro, e foi nesse papel que explicou que “não se podia repetir a passagem administrativa de 1974”, por altura da revolução do 25 de Abril, em Portugal.
No setor da Educação, “o grosso dos professores eram cabo-verdianos”, o que facilitou a transição para um país independente, em contraste com a Saúde (pasta ministerial que Faustino recebeu após o 05 de julho), em que a situação foi mais crítica.
“Havia 11 ou 13 médicos por altura da independência e isso refletiu-se” nos cuidados à população, recorda.
Mas a data estava marcada: chegou o Dia da Independência e a azáfama continuava a ser constante entre Faustino e camaradas, que tinham estado a tratar das primeiras eleições, a par da logística para receber tantos convidados, sem que houvesse estruturas suficientes para os alojar na cidade da Praia.
“Fazíamos tudo”, recorda.
“Essa tal energia foi algo determinante, fundamental nos primeiros tempos de independência”, porque todos trabalhavam sem reservas, o que “ajudou a enfrentar todos os desafios, na saúde ou os anos de seca, com uma mobilização popular em que tudo se fazia”.
“Tínhamos ajudas de custo para viagens, mas devolvíamos o que sobrava”, algo que hoje até “pode parecer ridículo”, mas que retrata o ambiente da época, acrescenta, num quadro em que os mesmos membros do Governo iam para a rua em “campanhas de limpeza ou higiene sanitária”.
O ambiente político transformou-se, mas num balanço geral deste 50 anos de independência, “quem viveu antes de 1975 e compara com a realidade de hoje” nota uma evolução “inquestionável”.
“O balanço é francamente positivo: há uma massificação do ensino, melhorias muito significativas ao nível do desenvolvimento humano e em indicadores de saúde. Isso é indiscutível. Podemos discutir se podia ter sido melhor ou não, mas isso é outro aspeto” que para Manuel Faustino não suplanta o caminho feito.
“Não há comparação entre o antes e o depois”, porque, por exemplo, na educação, “havia um liceu e meio e passámos para mais de 50”.
No campo da mortalidade infantil houve um salto de gigante de cerca de 120 por mil para 13 a 15 por cada mil crianças, a par da cobertura vacinal na casa dos 90% ou do analfabetismo, que se tornou “residual”.
Pode haver problemas como focos de subnutrição, mas “as fomes desapareceram”.
Quer dizer que tudo está garantido para sempre? “Não”, responde Manuel Justino.
“Temos limitações nossas”, na agricultura, no acesso à água, que advêm de uma localização geográfica que expõe o arquipélago a uma aridez crónica, mas “a história de resiliência e inovação mostra que é preciso continuar a procurar, ver de uma solução no mar [dessalinização], nas tecnologias de informação, nos serviços. É preciso continuar a procurar”, insiste.
Além disso, Manuel Faustino considera que o país não tem “tirado todo o proveito” da diáspora, a 11.ª ilha que engloba 1,5 milhões de cabo-verdianos e descendentes, o triplo dos residentes nas ilhas.
No final da década de 1970, Manuel Faustino afastou-se do PAIGC, rumou ao Brasil onde se especializou em Psiquiatria, voltando a Cabo Verde na abertura multipartidária dos anos 1990, integrando, como independente, o Governo do Movimento pela Democracia (MpD), assumindo o lugar de ministro da Educação (1991-94).
Em 2011, com a eleição de Jorge Carlos Fonseca, chefiou a Casa Civil da Presidência da República, período durante o qual também lançou o movimento Menos Álcool, Mais Vida, que ainda hoje dinamiza, além de continuar a sua atividade como psiquiatra no estabelecimento prisional da cidade da Praia e como profissional liberal.
A Semana com Lusa
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