sexta-feira, 06 junho 2025

Um aedo-tributo ao meio século de livre caminhada da nossa gente – Terceira e última parte

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Diante da auscultação do auspicioso sage soba, deixei a reação a cargo do Jano-Jano, que era mui mais expedito e eficiente que eu, um saloio consumado, na arte da retórica, para amenizar com a sua blandícia de gema os abruptos e agrestes desafios.

Por Domingos Landim de Barros*

 

À hora marcada para a ímpar ocorrência, com a precisão de um relógio suíço, todos estiveram juntos e de palpitante coração, com dísticos e cores de certeza no sucesso da máscula empreitada. Os dignitários e populares levantaram o braço, bateram as palmas e em uníssono cantaram - «Viva nos Hespéria! Nos tchon e pa nos povu. Abri bu folgu, bu grita bu liberdadi. Comba, comba Cabral. Comba, combatente di nos tera». Entretanto, das imediações do Curral de Burro e do trágico dodó da era da Assistência e sucumbência, ouviu-se a voz de um desbocado reacionário, bastante desagradado com a festança e solenidade da cerimónia, agindo na contramão de inegável factualidade e de toda a empáfia e autoestima da corte de creme balalaica, disparou o seu azedo impropério da traqueia - «Bazófia para quê, para estragarem a terra, hem?». Desconchavo de um quiçá celerado extraterrestre que, de súbito, desapareceu no esconso lamaçal de ignorância, seguido de ruidosos apupos e deboche correlativo de uns aguerridos militantes do entourage.

 

 

Dotado de uma exímia cultura urbana, tratava os meandros de uma sinuca de bico com pinça e com mestria. O nato diplomata das ilhas trocou dois dedos de conversa com o maioral das nossas deleitáveis pretendidas e tudo ficou resolvido. Por mérito próprio e num ápice de instante. Fizemos a mesura e pedimos a bênção de retirada. Retornamos ao nosso ponto de partida. No regresso, como havia chovido a cântaros no Chão de Papiro, o meu esfuziante compatrício de caserna torceu o pé direito, numa zona pantanosa e começou a claudicar. O régulo local e persuasivo bom caudilho foi logo em nosso auxílio. Levou na mão um amuleto (emplastro de uma planta regeneradora e altamente prodigiosa). 


Pôs a mezinha em cima da parte inchada do pé de J, garantindo folgadamente - «Daqui a três horas estás a cem por cento em forma. Com esta erva mirabolante já curei vários camaradas do tempo da luta, incluindo o tio Demba, que foi o guia primacial da nossa fabulosa revolução». Depois de se arvorar em sagaz e afável médico, o nosso anfitrião colocou de parte a minudente bazófia acerca da leges artis e afastou-se de nós, mas sempre a seguir-nos com rabadela de olhar de precavida curiosidade.  A caminho do quartel, J voltou-se para mim, um tanto inebriado e exclamou - «Che! Como é possível, mano Fragoso? Saber os nossos nomes e adivinhar as nossas preferências, na questão da barra de saias… Não, isto é demais!». Pensei um tanto e simplesmente rebati - «Estás em África profunda dos contos de mamba preta e de rebuscadas peripécias do velho irã, meu caro irmão». Chegamos à unidade, J embrulhou-se na cama, arrufou ficticiamente o semblante e astutamente me picou - «Agora, paga-me as dívidas, seu malandro!». 


Só para testar a minha capacidade de argúcia, porque J, um enormemente desprendido, jamais me cobraria fosse o que fosse. Aliás, em boa verdade, o cativante rapaz de burgo fazia de santo padroeiro da nossa radiante companhia e de todas as minhas hostes atribuladas. Não vacilava nem titubeava a sair em campo aberto, para assegurar a defesa do seu amigo de máxima confiança. Assim, olhei para ele e para o graduado de serviço, enredei uma falácia em como o meu compincha da missão tinha febre, reforçando a ideia junto da hierarquia - «Quente mesmo, camarada oficial-dia». Sendo véspera de um feriado, estava tudo calmo no quartel, o magnânimo tenente viu J a transpirar e não desconfiou das nossas fugas e desvio de percurso às bolanhas do arroz e do caju. J, porém, apenas suava em virtude de bastante exaurido e esmagado por um calor abrasador, que se fazia sentir na orla portuária, nas instalações da Marinha. Graças a Deus, nada de maior aconteceu ao meu fraterno e denodado camarada. Tal como o «homi grandi» havia feito premonição, jano-Jano recuperou-se da lesão na mesma noite. De manhazinha, o Pupilo de todas as proezas e maravilhas estava aos pulos na parada, fresquinho, justamente igual à aura de alface ou ambrósia seletiva à mesa de divodigno acepipe, bem ao estilo que sobejamente o conhecíamos.  


Em Remanso de Saudade dizia-lhe a brincar - «J, eu sou um afamado fugitivo dos fins-de-semana e tens que me fazer a cobertura com unhas e dentes. Podes tirar o curso de mentira, porque só eu confio em ti». Ao que ele, de relance e a mirar-me no buço de ingenuidade, assumia ares de batida cumplicidade e resmungava - «Sim, sou o teu advogado. Fogo!  Agora, até tu com testa-de-ferro, seu macabeu!». Importante foi que ele nunca deu as minhas causas por perdidas. Pupilo é daquele amigo que vale a pena ter em mente e preservar: eficaz, sincero, prestativo e subtil. Inúmeras vezes tomava conta da minha indústria sem eu saber, pois quase sempre nas minhas costas. Noutras alturas, manifestava sinais de bastante preocupação. Ficava angustiado com a falta de lisura na relação de amizade. Abrenunciava a traição e desabafava comigo - «Meu caro, aleivosia é uma coisa hedionda e suja. Não viste como acabou o nosso venerável Tio Demba?». Patriota de coturno e de firme convicção, mas o que tornava J alguém extraordinário era o seu castiço voto de lealdade inabalável, quer em relação aos símbolos nacionais, quer no tocante aos seus coevos da aventura. 


Não era capaz de urdir intrigas para beliscar a honra dos seus colegas. Eu concordava com ele, no quesito da praga detestável e mui em voga à época no continente. Punha-me apreensivo a escutá-lo. Tínhamos sido o primeiro contingente enviado à mágica Galé, para vir depois, em apoteose, alevantar a bandeira de carlinga e cantar o hino inaugural da mítica odisseia. Tal como previsto pelas entidades oficiais, assim aconteceu. Entramos pelo líquido enfiamento de uma raia e viemos até o piso de batuco de Nha Bibinha e Nácia Gomi. Por volta das dez de um dia de esteio a consabida proclamação. O céu dispôs-se claro e promissor, parecia cálido e mais próximo da gente. Na data, todas as distâncias se estreitaram e convergiram na Vargem, o palco irrepetível da sacra cerimónia.  Da diáspora fraterna, das ilhas e dos confins do mundo amigo e solidário. Do palanque da efeméride via-se a efígie de uma figura modelar e carismática sobre a linha do horizonte. Tinha capa irreverente sobre as vestes e sumbia na cabeça, com as lentes do devir a meio da fronte. 


À medida que o sangrado lenço de sacrifício ia subindo, a lenda de inexpugnável referência punha-se a alar e a enlevar-se nas alturas, acenando-nos ao ritmo do canto então entoado na livre terra. Uma vez o mosaico-emblema no topo de majestade a esvoaçar, a perene sumidade acomodou-se solene e sublimemente nos recônditos da nuvem. Era o Primaz de toda a Hespéria e da Galé, em incensada transmutação de despedida. Em baixo, de um lado, coto de uma vela; doutro lado, o sol inteiro com auréola e empolgado no firmamento, com todo o seu esplendor e manancial de orientação, de inderrogáveis incumbências para cumprir. Dos ares do infindo céu, uma águia inspiradora de Concord empreendeu um derradeiro, fulminante, atabalhoado, acrobático e aclamado voo letal da nossa parte, dando um espetáculo memorável, nunca visto até a época. Mui sombrio e triste embora. 


De seguida, desceu para espuma da onda, com duas asas encolhidas, com aduncado e amorfo bico, já com garras impotentes e sem auras de mandona. Parou um pouco na lâmina da água, quiçá com nostalgia dos áureos tempos de vacas gordas. Voltou à tona, elevou-se novamente, ficou de bico para baixo e finalmente mergulhou a quilha no fundo do nosso mar, para nunca mais voltar, depois de tanto extenuado tempo de rapinagem.  Já no magnificente adro da nossa cerimónia, foi fascinante ver o J, de pé, em frente ao mastro de rejubilo, carregado de ungidas emoções e com visível sensação de nitente orgulho pátrio. Sendo um ícone castrense de inigualável acutilância e adoração, o seu aprumo e a sua entrega ao ideal da nova seara de eleição eram simplesmente inexcedíveis e por isso inatacáveis. J colocou o nédio olhar de praça na joia de coroa durante todo o glorificante momento de subida, mesmo quando encalhada a meio do trajeto. 


Da tribuna de honradez, o auriluzente vanguardista da nomenclatura, lançando um lancinante repto aos mancebos em presença, abriu a comissura labial de jubilação, com o mais alvo sorriso à mostra e com balsâmico otimismo, desafiou - «Se os homens não chegam lá, enviamos o mirífico jeito de uma mulher. Pois ela, uma constante parceira da nossa gesta, desde os vibrantes instantes iniciais, está sempre apta a intervir. Já ouviram falar da lendária Titina Silá ou da estrosa combatente, Cármen P’reira?». Nisto, uma esbelta e pulcra citadina desceu a toda brida da inesquecível bancada de epopeia, para ficar na História. Porém, o J, entusiasta e seguro de si, apelou - «Não se preocupem. Ela não tem como me escapulir. Vai ter mesmo que trepar a escadaria da nossa ampla expetativa até o cume do nosso sonho. Foi para isso que o nosso líder imortal, o venerando Pivô de Hespéria e seus confrades na Galé, ingentemente se bateram». E ordenou - «Vá! Solta-te ao vento e deixa de niquices, minha noiva!». Um inequívoco sinal de prontidão, na manhã do dia mais limpo da nossa herdade. 


Se o doirado véu de brinde ouviu ou não a intimação ninguém o soube, mas, mal o J fechou a novel fuça, a ninfa-pupa do nosso esmerado cultivo coletivo venceu o topo de resistência e caminhada. Era divinal observar a pompa tricolor a dardejar afoitamente no pico do zimbório imaginário do ledo povo. Tratando-se de maior fetiche e prerrogativa para um génio militar, como era o caso do J, não me surpreendeu que a mimosa tivesse obedecido às ordens do garboso fã republicano. Nesse dia, camiões e camiões tinham demandado a capital. Vieram da alta e secular noite de trevas, com o galo, a madrugada e a alvorada, com a fé na aurora rósea para todas as ilhas da antiga e reiterada submissão. 


À hora marcada para a ímpar ocorrência, com a precisão de um relógio suíço, todos estiveram juntos e de palpitante coração, com dísticos e cores de certeza no sucesso da máscula empreitada. Os dignitários e populares levantaram o braço, bateram as palmas e em uníssono cantaram - «Viva nos Hespéria! Nos tchon e pa nos povu. Abri bu folgu, bu grita bu liberdadi. Comba, comba Cabral. Comba, combatente di nos tera». Entretanto, das imediações do Curral de Burro e do trágico dodó da era da Assistência e sucumbência, ouviu-se a voz de um desbocado reacionário, bastante desagradado com a festança e solenidade da cerimónia, agindo na contramão de inegável factualidade e de toda a empáfia e autoestima da corte de creme balalaica, disparou o seu azedo impropério da traqueia - «Bazófia para quê, para estragarem a terra, hem?». Desconchavo de um quiçá celerado extraterrestre que, de súbito, desapareceu no esconso lamaçal de ignorância, seguido de ruidosos apupos e deboche correlativo de uns aguerridos militantes do entourage. 


Estes, furiosos ao rubro, não ficaram por meias medidas e desataram a excomungar o penetra indesejado da espirituosa celebração, da pior maneira - «Cale a boca, seu zangado! Oh, oh, julga-se o quê, ó energúmeno de merda?  Vá para o diabo, seu indigesto cu de piolho! Sabujo de duas patas ao pé da lancha de mau agoiro, com a goela cheia de miasma. Oh azarado escaravelho de uma figa!». O escumalho escorraçado e verbalmente atropelado saiu da cena de bola enxuta e cabisbaixo. Com isto, a investidura do nobre Estado foi consumada. E nós, uma data de heróis de quinta linha de obscuridade, fomos recolhidos ao quartel, onde nos serviram um rancho melhorado, em meio a uma frenética charanga militar. Assim, o zénite do dia mais sonhado e aguardado dos nossos eminentes ancestrais, o elemental marco de platina, que aglutina, subordina e dá azimute de leveza a todos os outros itens estelares, chegou ao fim e a nossa vida mudou de rumo. 

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*Na pose de Fragoso Landgrávio

 

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